O presente texto propõe-se ao estudo da conexão entre o Estado contemporâneo, a Administração pública e o Direito administrativo. Busca-se identificar as raízes históricas a fim de se compreender o atual cenário de transformações pelos quais passa o Estado brasileiro e que veio a afetar a administração pública e o direito administrativo. Não é possível compreender a evolução do direito administrativo sem a correta análise das transformações do quadro político-institucional e dos quadros científicos. Além disso, é preciso advogar o direito administrativo em termos da teoria democrática, em particular em prol da concretização dos direitos fundamentais.
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No período moderno, com a centralização do poder político, e com a emergência do capitalismo enquanto sistema econômico (em oposição ao sistema feudal e ao mercantilismo), configurou-se o Estado absoluto, cujos poderes estavam concentrados na figura do monarca, considerado o representante do direito divino aqui na terra. Não havia limites externos ao exercício do poder político, apenas o monarca é que estabelecia tais limites. Em um momento histórico subseqüente, aparece o Estado de Polícia. Buscou-se substituir o poder pessoal do monarca pelo poder estatal, cujo exercício é marcado pela laicidade, finalidade e racionalidade1. Portanto, no Estado de Polícia abre-se o espaço para o direito (limitação externa ao exercício do poder político), porém sua finalidade reside tão-somente em impor obrigações aos administrados a fim de garantir a ordem social. O direito é, nesse caso, um instrumento à disposição da vontade estatal. Chevallier explica que o Estado de Polícia fundamenta-se sobre a boa vontade do príncipe, não havendo verdadeiros limites jurídicos, nem verdadeira proteção aos cidadãos diante do poder2.
A autonomia científica do direito administrativo é dada pela existência de uma metodologia, por princípios, conceitos e categorias próprias. Seu objeto consiste em normas jurídicas, conceitos e instituições que disciplinam o exercício da função administrativa pela administração pública31. Historicamente, o direito administrativo se serviu do direito civil a fim de conquistar sua autonomia, mas atualmente é ele quem fornece novos parâmetros para o direito civil32. Mas, a administração pública pode ser, em certas hipóteses, disciplinada pelo direito privado. Daí porque a doutrina distingue entre o direito da administração pública (que pode incluir o direito administrativo e o direito privado) e o direito administrativo33.
Uma das noções-chave para a construção do direito administrativo consiste no interesse público. Com a separação entre Estado e sociedade, aparece uma noção histórica de interesse público fundada em oposição ao interesse privado. Postula-se a prevalência do público sobre o particular. A reflexão sobre a evolução histórica do direito administrativo revela o permanente conflito entre autoridade e liberdade, binômio esse que configura todo o direito administrativo. Segundo Norberto Bobbio o interesse público:
A noção de interesse público aparece, ao mesmo tempo, como fundamento, limite e instrumento do poder; configura medida e finalidade da função administrativa. Já foi utilizada no direito francês como critério de caracterização do direito administrativo. Subjacente o grande número de institutos do direito administrativo, apresenta-se como suporte e legitimação de atos e medidas no âmbito da Administração sobressaindo com freqüência nos temas do motivo e fim dos atos administrativos.
Por outro lado, a concepção clássica atribui ao direito constitucional o estudo da parte anatômica do Estado, enquanto o direito administrativo assiste o estudo da parte funcional do Estado, mediante a ação da administração pública, no dizer de Santi Romano. Mas, segundo o referido autor, o direito constitucional não é um ramo do direito público, mas é o próprio tronco do direito público39. Hoje, a concepção de Constituição e de direito constitucional é mais extensiva do que aquela vigente no período clássico que promovia o tratamento unitário para as duas disciplinas. É o que esclarece, a partir das lições de José Afonso da Silva e de Pellegrino Rossi, a professora Odete Medauar:
Como se sabe, a autonomia científica do direito administrativo em face do Direito do Estado foi iniciada no século XIX. Os doutrinadores procuraram identificar os critérios que possibilitariam a construção do verdadeiro objeto do direito administrativo, sendo que hoje é indiscutível a existência de bases constitucionais do direito administrativo. Para os objetivos do presente trabalho, é inegável a valorização da constituição administrativa ou a leitura administrativa da constituição, como apregoam Allegretti e Martin-Retortillo41. Agora, em razão do contexto europeu, vem sendo relativizada a conexão entre direito administrativo e Constituição, em particular em face da influência do direito comunitário sobre o direito administrativo de cada um dos países europeus42.
O desafio teórico deve ser enfrentado a partir de uma metodologia interdisciplinar que privilegie o direito administrativo, mas que também leva em consideração a análise de estudos provenientes de outros saberes43. Nesse sentido, não se pode esquecer que o direito administrativo é um subsistema jurídico que se relaciona com os demais subsistemas jurídicos e demais sistemas social, político, econômico e cultural. Trata-se, no entanto, de um subsistema aberto aos dados de outros sistemas, há uma abertura cognitiva para a recepção de informações de outros lugares sem que perca sua capacidade de auto-reprodução44.
As transformações ocorridas com o Estado brasileiro nos últimos tempos não diminuem a importância do direito administrativo. Apesar de todo o movimento de redução do papel do Estado na economia em função da internacionalização dos mercados e dos movimentos de privatização, o direito administrativo não está à margem do processo histórico. Não há como simplesmente advogar a tese do mercado livre, que oferece a auto-regulação de seus conflitos intrínsecos, em face de nossa Constituição. A experiência histórica demonstra que o direito não é um mero instrumento à disposição exclusiva do sistema econômico capitalista. O direito é um bem da sociedade que não é dominável por apenas um grupo de atores sociais, ainda que possa sofrer uma influência significativa. Não é possível ao mercado afastar o Estado e o Direito. Ao contrário, ambos têm a fundamental missão de atuar de forma substitutiva e compensatória aos mecanismos de mercado. É preciso o equilíbrio entre os sistemas político, econômico e jurídico45. É inegável a influência do ordenamento jurídico global sobre o direito administrativo brasileiro46. No entanto, o desembarque dos modelos internacionais não pode ser feito em território brasileiro sem o pensar crítico calcado nas raízes nacionais. Há de ser feita a crítica aos discursos jurídicos, políticos e econômicos que não considerem a normatividade constitucional47.
Agora, ao final, é importante fazer a conexão entre direito administrativo e democracia, em particular apontar os rumos para um direito administrativo de vanguarda dedicado à proteção e à concretização dos direitos fundamentais em nosso país. Com o surgimento da democracia representativa (democracia sob o regime dos partidos políticos) houve a separação entre a titularidade e o exercício do poder. Com isso, houve a redução da democracia ao processo eleitoral. Portanto, a legitimidade democrática em sua integralidade será tão-somente alcançada mediante a participação popular no Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), inclusive Ministério Público, na sociedade e no mercado, bem como, em particular, na esfera de comunicação social51.
E essa participação só será efetiva mediante a difusão em larga escala de educação e informação para os indivíduos e grupos sociais; trata-se de um pressuposto material para o alargamento da democracia substancial em nosso país. A questão da legitimidade democrática é, portanto, basicamente, um problema de controle dos titulares do poder e dos meios para se evitar abusos de poder; o que justificou a emergência do direito administrativo. Não existem condições históricas e materiais para a implantação de uma democracia direta; essa modalidade de democracia é mais um projeto utópico que um programa específico a ser alcançado nas sociedades complexas da atualidade. O que existe é a democracia possível, isto é, uma democracia que se defende e que avança no sentido de construção do bem-estar de uma população, mediante o aperfeiçoamento das regras do jogo político e das instituições, que una os mecanismos tradicionais da democracia representativa com os mecanismos da democracia direta52.
A democracia pressupõe a dignidade da política, isto é, de uma ação coletiva dirigida a um projeto comum. É evidente que o projeto comum deve ser discutido e aprovado por todos os cidadãos, ou, ao menos, submetido ao princípio majoritário com respeito às minorias discordantes. É preciso resgatar a democracia em termos republicanos, ou seja, a prática de autodeterminação de cidadãos em direção ao bem comum, a partir do reconhecimento e respeito mútuos. A integração social se faz mediante mecanismos de solidariedade garantidos pela esfera pública. É preciso que a esfera pública seja constituída pela participação dos cidadãos onde se possa de uma maneira livre e discursiva permitir a construção e a difusão de opiniões e de vontades esclarecidas em prol da comunidade. E, em tudo isso, há um enorme espaço para o direito administrativo para cercar a atuação da administração pública e, assim, fazer valer as tarefas constitucionais impostas ao Estado brasileiro. 2ff7e9595c
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